28 de mai. de 2010

josé dirceu


Por uma diplomacia com calçados



 Passados alguns dias do anúncio de que o presidente Lula e o primeiro-ministro turco, Recep Tayyip Erdogan, conseguiram negociar um acordo com o Irã para que o enriquecimento do urânio extraído do país se desse em solo estrangeiro (na Turquia), o mundo pôde presenciar as reais intenções dos EUA.
Mais uma vez, os americanos mostraram que agem unicamente levando em conta seus interesses hegemônicos, de controle e presença militar no mundo, interesses de grande potência econômica, não a paz, nem relações diplomáticas positivas.
A visita ao Irã de Lula e do primeiro-ministro turco garantiu o primeiro passo para um possível acordo dos iranianos com a OIEA (Organização Internacional para Energia Atômica) e os demais integrantes do Grupo de Viena (EUA, Rússia e França). Mas, dias depois, os EUA revelaram sua intenção de seguir com o pedido de sanções econômicas ao Irã no Conselho de Segurança da ONU.
O compromisso assumido por Teerã contemplaria justamente o que os americanos queriam, como foi possível constatar na carta enviada pelo presidente americano, Barack Obama, a Lula 15 dias antes do encontro do presidente brasileiro e de Erdogan com o primeiro-ministro iraniano, Mahmoud Ahmadinejah.
Na correspondência, Obama afirma que o envio de 1.200 quilos de urânio de baixo enriquecimento diminuiria as tensões no Oriente Médio e abririam espaço para negociações. Mas a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, tem agido de maneira incoerente com o teor da carta de Obama a Lula e pretende sugerir ao Conselho de Segurança da ONU novas sanções contra os iranianos.
Mais uma vez, os EUA mostram que o interesse do Departamento de Estado norte-americano não é solucionar os impasses acerca do programa nuclear iraniano. O real objetivo é desestabilizar o governo do Irã, que representa hoje o principal entrave aos interesses econômicos dos EUA no Oriente Médio —mais especificamente, no Golfo Pérsico, onde possui importantes reservas de petróleo.
Sanções do Conselho de Segurança contra o Irã repetiriam o erro do embargo ao petróleo do Iraque em 1990, outra ação dos EUA para sufocar um regime —na ocasião, o de Saddam Hussein. Tal resolução foi apontada pela revista Foreign Policy como uma das dez medidas mais desastradas do órgão das Nações Unidas. O resultado foram guerras, e a população iraquiana foi a principal prejudicada.
Os EUA são hoje um império em decadência, constatação de diversos analistas internacionais. Principalmente, porque não conseguem lidar com a nova realidade de um mundo em rearranjo de forças, um mundo multipolar.
Nessa nova configuração, as principais questões econômicas, militares, sociais e ambientais são solucionadas com a participação de um número maior de países. O protagonismo, na questão do Irã, de Brasil e Turquia, ambos países emergentes, foi necessário para se vislumbrar novas possibilidades de solução do impasse do programa nuclear iraniano.
Em outubro do ano passado, a AIEA havia feito uma proposta para os iranianos enviarem o urânio de baixo enriquecimento para França e Rússia, mas Teerã não acreditou que o outro lado, formado por duas nações detentoras de armamento atômico, cumpriria seus compromissos. No mesmo sentido, a relação de Washington com o governo israelense, detentor de armas nucleares, corrói a credibilidade norte-americana.
Mais do que países que podem falar de igual para igual com os iranianos, Brasil e Turquia são distanciados o suficiente do conflito para assumirem o papel de mediadores. Por isso, o esforço turco-brasileiro é bem visto por analistas no exterior como um importante passo para a paz.
No Brasil, a nova conjuntura internacional favorável à participação dos países emergentes não é assimilada pela oposição, apoiada pela grande mídia e pela visão diplomática que vê nosso país num papel secundário. É o que justifica a defesa da ação dos EUA no episódio. Ignoram que só a abertura de novos e arejados canais de diálogo é capaz de evitar um quadro de acirramento da disputa envolvendo o urânio do Irã, o que, em última análise, pode desembocar em um conflito armado na região.
Mas ignoram, principalmente, que o mundo está em transformação e que, por ação do Governo Lula, a participação brasileira no impasse iraniano é revelador do novo papel que o Brasil pode exercer no século 21.
Deixar de lado o protagonismo brasileiro, exercido com êxito pelo presidente Lula e pelo chanceler Celso Amorim, é fazer nosso país retroceder uma década inteira. É levar o Brasil aos tempos em que a submissão aos EUA era tão grande que admitíamos todas as ofensas diplomáticas vindas dos americanos. Hoje, nossa diplomacia é feita com calçados.



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