28 de mai. de 2010


CARTAS DE ESTOCOLMO


Crianças de chumbo


 É o nome do filme que tive o desprazer de assistir hoje. No entanto, recomendo a quem possa que não deixe de ver o documentário de William Johansson e Lars Edman.
Não pude resistir a uma história de catástrofe ambiental, envolvendo uma empresa sueca que envia resíduos contendo metais pesados para Arica, no norte do Chile. Eram muitos ingredientes próximos e queridos: meio ambiente, Chile e Suécia.
A empresa mineira sueca Boliden, pressionada pelas autoridades ambientais locais para tratar seus resíduos, encontrara a solução ideal: enviá-los para que uma empresa chilena fizesse o tratamento adequado e a posterior disposição final do material.
Estamos falando do Chile dos anos 80, que recebeu mais de vinte mil toneladas de lixo tóxico. Em lugar de proceder ao tratamento necessário do lixo, a empresa Promel, receptora do material, deixou tudo lá, num morro nos arredores de Arica.
A cidade cresceu e o resultado são centenas de crianças gravemente enfermas, bebês natimortos ou com graves deformações. Poucas pessoas assumindo responsabilidades, alguma culpa e muito cinismo.
Além das horríveis histórias das crianças diretamente afetadas, por terem crescido brincando no morro tóxico - fazendo bonecos de material contaminado e com altíssimo conteúdo de chumbo, mercúrio e arsênico - a parte mais tocante do filme é a participação do antigo chefe da área ambiental da Boliden.
Rolf Svedberg é, hoje, juiz da Suprema Corte Ambiental sueca. Chocado com os resultados de uma decisão para a qual contribuiu, dispõe-se a viajar ao Chile, acompanhando uma equipe de filmagem. Mal contém as lágrimas ao ver a situação dos habitantes da área do Cerro Chuño.
A maior constatação: nenhuma ilegalidade foi cometida. Tudo se fez dentro das leis vigentes na época, na Suécia e no Chile, e no âmbito do direito internacional.
A pergunta que não quer calar é: legalmente, a Boliden não cometeu nenhum erro. Mas até que ponto deveriam a empresa e as autoridades suecas ter confiado nas promessas de uma empresa privada chilena, sob a ditadura de Pinochet?
Não haveria um dever moral de assumir responsabilidades e minorar o sofrimento daquelas pessoas, em sua maior parte crianças?
Esse é um assunto que vem rondando há muito, quando me ponho a pensar sobre o tema da Carta da semana. Uma leitora fiel certa vez me perguntou se havia interesse de um país como a Suécia em ajudar países mais necessitados.
Sem dúvida! A Suécia conta com um enorme orçamento para ajuda internacional. E é muito elogiada pela qualidade do apoio que presta a nações desamparadas.
Pensei também na preocupação dos suecos com a responsabilidade social de suas empresas: não devem empregar crianças, devem assumir sua responsabilidade ambiental, devem dar boas condições de trabalho a seus empregados e assim por diante.
No entanto, muitas vezes, essas exigências aparentemente tão boas, podem ter consequências negativas.
Por exemplo, ao deixar de comprar laranjas produzidas no Haiti, devido às péssimas condições de trabalho, a Suécia ajuda ou atrapalha a população haitiana?
Ao criticar a importação de etanol do Brasil, devido à situação dos trabalhadores da cana, os países ricos estimulam a melhora das condições de trabalho no campo, ou apenas comprometem os postos de trabalho existentes e as condições de vida já precárias daquelas pessoas?
Ao fazer exigências ambientais a suas empresas, sem assumir a responsabilidade pelo que um dia o país exportou a nações mais pobres, a Suécia cumpre com seus ideais e objetivos ambientais?
A Boliden, confrontada com os efeitos da sua “exportação”, ofereceu “ajuda”, a preço de custo, à população afetada. Você conhece as condições de pobreza dos habitantes dos morros circunvizinhos de Arica?
A pergunta de um espectador, no painel para discussão que se seguiu à prémière sueca do filme, revela o dilema “moral versus capital”: independentemente do problema legal e formal, por que a Boliden, ao ver a situação das pessoas afetadas, não lhes oferece ajuda, assim... gratuita, simplesmente?
A pergunta ficou sem resposta.
Se puder, veja o filme!

Sandra Paulsencasada, mãe de dois filhos, é baiana de Itabuna. Fez mestrado em Economia na UnB. Morou em Santiago do Chile nos anos 90. Vive há mais de uma década em Estocolmo, onde concluiu doutorado em Economia Ambiental.

Nenhum comentário:

Postar um comentário