23 de mai. de 2010


Bienvenidos a Touristland



 Dias atrás recebi email de uma amiga que vem passar uns dias com o marido em Barcelona. Depois de muito procurar hotel a preço razoável, ela encontrou um flat e me pedia para avaliar a localização.
Entrei no site que ela indicava e tive uma enorme surpresa: o flat é nada menos que o prédio em frente ao meu!
Fiquei intrigada. Como diabos eu moro aqui há oito meses e nunca tinha notado que o meu vizinho é um flat? E onde foi parar a estudante australiana que estava ali até ontem?
Lembrei que, ao chegar, em agosto passado, a maioria dos poucos apartamentos que encontrei para alugar na Cidade Velha estavam disponíveis somente de setembro a abril. O que me obrigou a rodar a cidade por quase um mês até conseguir um lugar para morar.
Eu já nem me lembrava da peleja daquela época quando vi as fotos do tal flat. Como num filme rebobinado, voltei quadro a quadro à angústia de ser quase uma sem teto em Barcelona, mesmo disposta a pagar o que me pediriam – desde que houvesse um teto para alugar.
Na verdade, há. Por temporada. A 700 euros por mês, de setembro a abril, e 100 euros por dia de maio a agosto. É o que estão pagando os turistas que transformaram a paisagem à minha janela num entra-e-sai frenético.
Uma vizinhança rotativa, se eu quiser ser simpática. Ou a Touristland, como dizem os barceloneses expulsos de sua cidade pela especulação imobiliária.
“Touristland é um parque temático situado onde antes se encontrava a cidade de Barcelona”, diz um documento lido durante protesto na Praça Catalunha, diante de turistas perplexos. “Não queremos amargar suas férias, apenas dar-lhe algumas informações que sua agência de turismo e a Prefeitura de Barcelona jamais lhe darão.”
E continua: “Esta cidade apostou num modelo econômico baseado na imagem, no turismo e na venda do solo público. Enquanto milhões de turistas passeiam pela Touristland, seus habitantes sofrem os efeitos devastadores deste modelo”.
Os “efeitos devastadores” têm nome próprio: mobbing imobiliário. Um conjunto de ações e omissões deliberadamente urdidas para expulsar dos antiqüíssimos prédios da Cidade Velha os inquilinos que insistem em viver onde sempre viveram.
O jogo é pesado. O cerco começa com o abandono do prédio pelo proprietário. Manutenção zero. Operários enviados para acelerar a destruição. Retirada de interfones, caixas de correio e iluminação das escadas.
Se, mesmo com o prédio caindo aos pedaços, os inquilinos insistirem em morar ali, pagando seus aluguéis contratuais, a coisa pode piorar.
O proprietário começa a não receber o valor do aluguel, por mais que os moradores insistam em pagá-lo; depois de três meses, ação de despejo neles.
Corta o abastecimento de água, luz e gás. Acumula lixo e entulho nas escadas. Produz ruídos assustadores. E pode chegar ao cúmulo de instalar aparelhos de radiação ou microondas para provocar enjôos e dores de cabeça nos moradores.
Isso sem falar no cerco jurídico, com denúncias de toda natureza contra os inquilinos e detetives contratados para reunir “provas” contra eles.
Foram mais de 500 os casos de assédio imobiliário denunciados em Barcelona entre 2004 e 2007, um terço só na Cidade Velha. A maior parte das vítimas são pessoas idosas com baixa renda, que moram há décadas no mesmo lugar e raras vezes tem a quem recorrer.
Mas os jovens também sofrem as conseqüências do mobbing: a escassez de imóveis deixa a eles, como única alternativa, a peregrinação constante e muitas vezes inútil em busca de um quarto para alugar em um “piso compartido”.
Em maio de 2006, milhares de jovens foram às ruas em 60 cidades espanholas protestar contra a falta de moradias dignas. Barcelona, uma das cidades onde o fenômeno é mais gritante, só dois anos depois passou a contar com um fiscal municipal contra o assédio imobiliário.
Em abril do ano passado, a Espanha viu nascer, exatamente em Barcelona, a primeira entidade antimobbing de sua história, a Asociación de Afectadas por el Acoso Inmobiliario (AAAI).
O assédio continua crescendo. Multiplicam-se os grupos organizados e sites com orientações às vítimas.
Os turistas que fazem rodízio no flat aqui em frente não sabem de nada, é claro. Como eu também não sabia até vir morar aqui.
Se soubessem, talvez entendessem porque nem sempre conseguem encontrar Barcelona em Barcelona. É que Barcelona, a original, mudou-se para o pueblo ali do lado, onde ela pode pagar o aluguel.

Anamaria Rossi é jornalista e está passando uma temporada em Barcelona, onde pretende converter-se em cozinheira. Compartilha suas descobertas no blog Yo que sé? Uma aprendiz em Barcelona (http://yoquesebarcelona.wordpress.com)

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