9 de mai. de 2010

Mães, madrastas e outros mamíferos 

por daniel piza





As propagandas e reportagens que antecedem o Dia das Mães só competem em pieguice com o Natal, quando as revistas repetem a velha capa sobre o significado de ser cristão, etc e tal. Tudo soa como anúncio de margarina, que idealiza a família perfeita como aquela em que a mãe sorridente prepara o café da manhã para o marido de gravata e o casal de filhos que ele vai deixar na escola a caminho do trabalho. Fala-se muito no carinho, no instinto maternal, no “sexto sentido” das mães – assim como no Dia dos Pais a ênfase é na projeção, na consciência, na tal lição de vida. Os séculos se passam e isso não muda: o homem é tido como o que dá exemplo, a mulher como a que dá colo. Isso nunca foi exato, e é menos exato ainda nos tempos atuais.

É claro que os comunicadores tentam se adaptar às modernidades, e então vemos algumas iniciativas que tentam dar conta dos novos arranjos familiares. Mas veja o tratamento de termos como “madrasta”. Depois de incontáveis histórias em que elas encarnam bruxas ou usurpadoras, desde os contos infantis até filmes de Hollywood e novelas da Globo, essa palavra ainda tem salvação? Em realidade, seu significado é mais associado à mulher que assumiu o lugar da mãe que morreu. Para identificar, por exemplo, a segunda mulher do pai, que tantas e tantas vezes hoje em dia tem ótima relação com a filha do primeiro casamento, “madrasta” não soa bem, soa? “Enteada” é menos mal. Temos que cunhar nova designação, apesar de algumas brincadeiras que conheço ou fazemos (”mãe de fim de semana”, “boadrasta”, etc).

O que está por trás da dificuldade é essa carga de preconceitos que trata sempre as mães como santas, dotadas do “dom divino” da gestação, de uma espécie de condição biológica que obrigatoriamente leva à noção de que ela está sempre certa, sabe o que faz, só pensa no bem dos filhos… Talvez porque a sociedade lhes reserve esse papel, muitas mulheres confundem a maternidade com uma dessexualização, por assim dizer; cortam os cabelos, mudam as roupas, não se permitem experiências; algumas nem sequer transam durante a gravidez. Não que os homens também não parem de cuidar do visual, engordando ano a ano; mas sobre eles não pesa a premissa de que sejam contidos ou discretos. E isso se soma às pressões sobre a mulher moderna, que sofre para combinar vida profissional, amorosa e maternal sem sair da forma nem da moda.

As artes estão cheias de representação das mães, ao contrário do que ocorre com os pais. Desde a “madonna con bambino” que é tema de salas e mais salas dos museus, principalmente na arte bizantina e renascentista, até a canção Mother de John Lennon, os exemplos se multiplicam. A literatura brasileira tem algumas grandes personagens como a dona Glória, em Dom Casmurro, de Machado de Assis, que por promessa obriga o coitado do Bentinho a ser padre, mas não disfarça que gostaria que não fosse embora, o que a aproxima de Capitu. Ou como a mãe de Lavoura Arcaica, de Raduan Nassar, que Luiz Fernando Carvalho filmou como a luz essencial e insubstituível da memória afetiva. E como a Zana de Dois Irmãos, de Milton Hatoum, uma matriarca libanesa em Manaus, que numa das melhores cenas vai ao cais resgatar o filho rebelde dos braços da ninfa.

Mães são assim, intensamente apegadas às crias mesmo que flertando com a irracionalidade, e não é preciso assistir a séries como Vida, do Discovery Channel, para relembrar como nós, mamíferos, somos tão parecidos. Mas também sabem ir bem além do papel que querem lhes destinar – um “destino” que estaria escrito na carne e no espírito, como se mãe nunca rejeitasse ou preferisse um filho. Neste Brasilzão que tenho percorrido, o que mais vejo são mães solteiras, muitas jovens demais, abandonadas por levianos que acham que a obrigação da prevenção é exclusiva delas. (Ou será que, se a mulher tem inveja do pênis, segundo Freud, o homem tem inveja do parto?) E elas são mães e dublês de pais e extraem sua determinação da certeza de que aquele vínculo não se vai com o vento. A essas mães, que não estão nas propagandas, dou parabéns.

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