17 de mai. de 2010

l. f. veríssimo,em "O GLOBO"


Na dividida



 Ontam que depois de um vexame do David Beckham num jogo da Copa na Alemanha, sua mulher Victoria teria ligado para seu celular e dito algo como "Anime-se, baby. Seu cabelo estava ótimo".
Uma frase cheia de sentidos. Significava que futebol é apenas futebol e que nada é tão trágico que não tenha suas compensações. Significava que ninguém deve se abater com um tropeço passageiro porque a vida continua e pode ser bela, ainda mais se você é o David Beckham e tem o seu cabelo. Mas, pressupondo-se uma dose de cinismo no comentário da Victoria, que era uma das Spice Girls, ou garotas apimentadas, a frase era para lembrar o marido das suas prioridades: tudo pela Inglaterra, certo, baby, mas acima de tudo a sua. A seleção não era tão importante quanto o estado do seu cabelo.
Com os jogadores de futebol ganhando cada vez mais e portanto sua integridade física valendo cada vez mais, não é de admirar que na hora de meter o pé para dividir uma bola a questão das prioridades passe pela sua cabeça, em meio segundo. Arriscar tudo — perna, sustento da família, contratos de publicidade, futuro — na dividida, ou esquecer tudo isso e entrar, pela camiseta ou pela pátria, para rachar? Uma crítica feita a alguns jogadores brasileiros naquela Copa era que estariam mais preocupados com suas imagens pessoais do que com o sucesso do grupo. Cada um tinha o seu cabelo do Beckham para cuidar.
Não sei até que ponto a decisão de $o Dunga para dirigir a seleção nasceu desta constatação, justa ou não. Ninguém imaginava que ele fosse um estrategista, mas se existiu um jogador que nunca hesitou em entrar de corpo, alma e cabelo numa jogada, na história recente do futebol brasileiro, foi o Dunga. Ele teria sido contratado menos como técnico do que como exemplo. O que torna toda a discussão sobre planos e táticas e jogadores convocados ou não convocados um pouco irrelevante. Dunga nunca escondeu o tipo de jogador que prefere, e foi coerente. Sua coerência como treinador é a mesma do jogador que entrava na bola sempre com a mesma decisão, sem pensar em se autopreservar. Anunciando sua convocação coerente apesar de toda a pressão, Dunga foi, mais uma vez, na dividida.

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