8 de mai. de 2010


Entrevista: Primeira juíza negra do país e autora de livro sobre racismo.


luislinda-valois
A juíza Luislinda Dias de Valois Santos , lançou em 2009 seu primeiro livro, “O negro no século XXI”, pela editora curitibana Juruá.
Em setenta e duas páginas, Luislinda faz um ensaio sobre a situação atual do negro em diversas áreas, como lazer, educação, trabalho, justiça social, políticas públicas, esporte.
A juíza abandona o ‘juridiquês’ e escreve numa linguagem simples e direta, de fácil compreensão.
Luislinda ainda terá sua vida contada no livro “A juíza que rodou a baiana”, escrito pela jornalista Lina de Alburquerque e que deve ser lançado no final deste ano. “O projeto prevê cerca de cinquenta horas de gravação de entrevistas com a personagem e pessoas diretamente ligadas a ela”, conta Lina.
É sempre o negro o delinquente

O professor pediu o material de desenho, a custo o pai de Luislinda conseguiu com prar um, meio remendado. Pois bastou o professor ver o material para magoá-la para sempre. “Menina, deixe de estudar e vá aprender a fazer feijoada na casa dos brancos”.
Ela chorou, ainda se emociona quando relembra, 58 anos depois. Mas tomou coragem e retrucou: “Vou é ser juíza e lhe prender”. A primeira parte, ela cumpriu. Em 1984, a baiana Luislinda Valois Santos tornou-se a primeira juíza ne gra do País.
Não à toa, também foi ela quem proferiu a primeira sentença contra racis mo no Brasil. Em 28 de setembro de 1993, condenou o supermercado Olhe Preço a indenizar a empregada domésti ca Aíla de Jesus, acusada injustamente de furto. Aos 67 anos, lança em agosto seu primeiro livro, “O negro no século XXI”.
Como foi sua infância? Imagino que não tenha tido muitos recursos…
Faça uma pequena ideia (risos). Mi nha mãe era lavadeira e costureira e meu pai era motorneiro de bonde. Minha infância foi miserável, mas meus pais sempre primaram pela educação e pela nossa saúde. Quan do eu tinha 9 anos, estava começan do a estudar, um professor pediu um material de desenho e meu pai, coi tado, não pôde comprar o que ele pediu, mas comprou outro.
Quando cheguei à escola, feliz da vida, ele disse: “Menina, se seu pai não pode comprar o material, deixe de estu dar e vá aprender a fazer feijoada na casa dos brancos”. Imagine como foi marcante pra mim (chora). Saí cho rando. Mas sou muito impetuosa. Voltei, fui em cima dele efalei: “Não vou fazer feijoada para branco, não. Vou é ser juíza e lhe prender”.
Em ca sa, ainda tomei uma baita surra do meu pai. Naquela época, não se po dia desrespeitar professor.
Começou a trabalhar cedo?
Com 7 anos, quis aprender datilo grafia e, para pagar o curso, minha mãe sugeriu que eu lavasse aquelas fraldas de pano que se usava na épo ca. Aí fiz isso. Mas, trabalhar real­mente, comecei com 14 anos, como datilógrafa.
Comecei na Companhia Docas da Bahia e, logo em seguida, minha mãe tinha acabado de mor rer, me arrumaram um trabalho no DNER (Departamento Nacional de Estradas e Rodagem, hoje Dnit). Fui crescendo lá: trabalhei como escre vente, escriturária, chefe de orça mento.
Estudei filosofia, não con cluí, depois comecei teatro, mas meu pai não me deixou cursar, disse que era coisa de prostituta. Aí, um dia, decidi fazer direito. Já tinha uns 34, 35 anos.
Me inscrevi e passei na Universidade Católica. Me formei aos 39 anos, no dia 8 de dezembro e, no dia 9, começaram as inscrições para o concurso de procurador do DNER.
Passei em primeiro lugar no Brasil. Mas não pude assumir aqui.
Por que não?
A pessoa que passou em último tam bém era daqui da Bahia. Como eu não tinha padrinho político, algu mas autoridades me puseram numa sala e falaram: “Doutora, precisa mos da sua vaga aqui. Vamos lhe oferecer Sergipe ou Paraná”. Aí fa lei: como vocês estão me mandando embora, vou logo para longe. Fui para o Paraná. Com 90 dias, o chefe da procuradoria de lá se aposentou e fui designada para a vaga dele. Morei lá quase 8 anos.
Li que, antes de estudar direito, a senhora participou de um concurso de beleza. Como foi isso?
Trabalhava no DNER, tinha uns 20 anos, e um dia me chamaram na diretoria e falaram: “estão abrindo um concurso da Mais Bela Mulata e você vai ser a nossa miss” (risos). Aí eles foram falar com meu pai. Era de maiô e tudo, imagine…
Meuu pai fi cou bastante reticente, mas por fim pediu a seu Rangel, que era o chefe do administrativo, para assinar um documento se responsabilizando pela minha integridade física (risos). A integridade física da época era a tal da virgindade, a preocupação era essa.
Teve várias etapas. As mais im portantes foram no Forte de São Marcelo e na Rua Chile, que era o point. Ganhei como Miss Simpatia.
E como se tornou juíza?
Estava em Curitiba e vim de férias pa ra cá, soube do concurso pelo jornal A TARDE, que meu pai comprou. Fa lei: pronto, é agora. No dia seguinte, fiz a inscrição e as provas. Aí, uma noite, o telefone tocou e a menina disse que eu tinha sido aprovada. Acordei meia Curitiba, né? (risos).
O fato de ser a primeira juíza negra do Brasil só me dá responsabilidade. Até hoje só temos dois ministros ne gros nos tribunais superiores. Por que isso? A inteligência não é priva cidade de nenhuma raça. Até por que só existe uma raça, a humana. Ser juíza não é difícil. É só ter bom senso, estudar de manhã, meio-dia, de tarde e de noite e gostar de lidar com gente.
Não pode pensar que, só porque o cidadão é marginal, ele já merece estar enclausurado. Primei ro se vai ver por que aquele sujeito virou marginal.
A sociedade é quem escolhe quem vai delinquir. E te digo mais: nesse momento, a sociedade escolheu que é o negro, pobre, jo vem, da periferia. Na hora que se tem de condenar, se não tiver a quem condenar, se condena o ne gro, mesmo que ele ainda esteja no ventre da mãe.
A senhora falou que não é “porque o ci dadão é marginal que já merece estar en­clausurado”. A sociedade espera uma resposta, de todo modo.
A sociedade não colabora para que as pessoas não cheguem a delinquir. O que é que se tem de dar? Oportu nidades.
Primeiro, educação de qualidade e continuada. Imagine uma pessoa que tem oito, dez filhos, se depara uma manhã sem ter o pão para alimentar seus filhos. Se não ti ver muito equilíbrio, faz bobagem.
Já se viu diante de um caso desse? Como a senhora agiu?
Já, no interior. Resolvi da seguinte forma: fui até o prefeito e consegui um serviço de jardinagem para ele.
A pena que dei foi que, com o primei ro salário, ele pagasse o que tinha pego. Nunca mais ouvi falar que es se rapaz fizesse nada de ilegal.
Digo sempre o seguinte: se tiver eu e uma loira juntas, o que sumir primeiro, fui eu que peguei. É sempre o negro que é o delinquente de hoje.
No seu trabalho como juíza, ainda sofre muito preconceito?
Sou a sétima juíza mais antiga do Es tado e nunca consegui ser convoca da para o Tribunal. Me sinto prete rida.
Tenho certeza de que já era pa ra eu ser desembargadora há muito tempo, preencho todos os requisi tos.
Para se saber o que é racismo, é só ficar negro por 48h.
Certa vez, no juizado de Piatã, aproveitei o tempo para arrumar uns processos. Che gou uma advogada e falou: ‘O juiz vem hoje?’. Eu aí fiz um sinal para a moça não dizer que era eu.
A advo gada ficou lá, reclamando que juiz nunca chegava na hora, coisa e tal. Na hora da audiência, subi, pus a to ga e, quando ela me viu, não acertou fazer nada. Tive de adiar a audiên cia.
Falei: ‘Tenha paciência, a senho ra toma um chazinho de erva-cidreira e, amanhã, nós continuamos’. Precisa maior racismo do que esse?
A senhora proferiu a primeira sentença contra racismo no Brasil. Como foi a re­percussão do caso?
Me lembro bem. Aíla Maria de Jesus foi a um supermercado e quando es tava saindo, o segurança a humi lhou, disse que ela tinha posto na bolsa um frango congelado e dois sabonetes. Ela falou que, se ele cha masse a polícia, ela abriria a bolsa. Aí, a polícia chegou e viu que não ti nha nada.
Na época, a repercussão foi que o feitiço virou contra o feiti ceiro (risos). Comecei a receber ameaças, o pessoal ligava para a mi nha casa dizendo: “Onde é que essa negra faz supermercado?” Fiquei com medo e pedi afastamento, re solvi voltar para Curitiba.
Aí fui ao banco com meu filho, me sentei e ele foi resolver as coisas para mim. Passou um tempo o segurança ficou meolhando, depois veio outro, depois veio o gerente. E eu lá sem saber o que fazer. Pensei: se eu me mexer para pegar minha car teira de juíza, eles podem pensar que eu estou armada e me matar.
Quando meu filho voltou, criei alma nova. Ele falou: “O que é isso com minha mãe?”. E o gerente respondeu: “Ela ficou muito tempo aí sentada”. Chorei a tarde inteira.
No livro “O negro no século XXI”, a senhora diz que “a Justiça é inacessível ao negro pobre”. A senhora é uma das idealizadoras do Balcão de Justiça e Cidadania, que atende moradores das pe riferias. Isso vem melhorando?
Sim. Criei o Balcão de Justiça e Cidadania, o Justiça Bairro a Bairro, Justiça Itinerante da Bahia de Todos-os-Santos e o programa Justiça, Escola e Cidadania, para levar a Justiça às escolas públicas.
Recebi em Brasília, em 2006, o Primeiro Premio de Acesso à Justiça, pelo trabalho desenvolvido pelo Balcão.
A ideia é resolver conflitos pela mediação, inclusive divórcios, separações, pensão alimentícia, que são os casos mais frequentes.
As pessoas acham que, para ir até a Jus tiça, têm de estar com uma roupa muito arrumada, mas não precisa nada disso. Hoje, trabalho no juizado da Unijorge, que eu implantei.
Por que a Justiça na Bahia é uma das mais lentas no Brasil?
Primeiro, temos um número pequeno de magistrados e um número inaceitável de desembargadores. No Paraná, que é bem menor que a Bahia, são 120 desembargadores. Aqui, são apenas 35. É humanamente impossível. E a falta de re cursos colabora bastante negativamente.
O movimento negro muitas vezes pleiteia políticas específicas, como as cotas. Isso não fere a Constituição, que diz que “todos são iguais perante a lei”?
Não se pode igualar os desiguais. Tudo que é inferior é encaminhado ao negro. As cotas são importantes, mas não permanentemente, por que senão parece esmola. É enquan to se equipara o ensino público e pri vado. O problema é que a qualidade da escola pública não melhora.
A maioria das vítimas de homicídio em Salvador são jovens negros. Qual é a par cela de responsabilidade da Justiça? Há apenas duas varas do júri para julgar es ses casos.
Depois da visita a presídios, resolvi criar um projeto: Inclua no trabalho e na educação e exclua da prisão, para ocupar os jovens da periferia.
A te levisão fica com aquele ‘compre, compre, compre’. O adolescente vê um tênis e quer adquirir, seja como for. Pai e mãe também não têm con dições, saem para trabalhar, deixam o menino sozinho. O que acontece? O traficante vai e coopta.
O poder pú blico é culpado por não dar condi ções para as famílias terem uma vida mais digna. Isso tudo vai desaguar no Judiciário, e falta estrutura.
No livro, a senhora também fala sobre aborto. É a favor da descriminalização?
Acho que se trata o assunto olhando somente a mulher pobre. A mulher rica faz aborto a todo instante, mas isso não vem a público, ela não mor re, nem é presa.
Acho que tem de deixar de ser crime, sim. Ninguém aborta porque quer.
A senhora é de santo, e o pastor Márcio Marinho, da Igreja Universal, assina a contracapa do seu livro. Como é a relação de vocês?
Me criei no candomblé, sou filha de Iansã.
Acho que, primeiro, não se deve olhar a religião da pessoa, mas sim quem ela é.
Já fiz parcerias com a Igreja Universal, e eles sempre cum priram o papel deles.

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