27 de mai. de 2010

CARTAS DE PARIS


Os intermitentes do espetáculo



 Todas as quartas-feiras são publicados em Paris dezenas de guias e encartes de jornais que pautam a programação cultural da cidade. Dois dos mais importantes, Pariscope e L'Officiel des Spectacles, contam fácil mais de duzentas páginas. Olhando assim o calhamaço – que, detalhe, não se pretende exaustivo – impressiona ver o volume do que se produz culturalmente em Paris.
Deve haver uma infinidade de fatores para explicar porque a cultura é um setor tão pujante na França, enquanto sobrevive a tão duras penas na maior parte dos outros países. O mais importante deles, para mim, é a declarada prioridade que o Estado francês garante ao setor, materializada na existência de um estatuto profissional batizado de intermitente do espetáculo.
Criado em 1939 para enquadrar os trabalhadores e técnicos do cinema, a profissão de intermitente sofreu inúmeras alterações até ganhar a forma atual, que abrange músicos e artistas do cinema, da televisão, do teatro e de todo outro tipo de espetáculo que tenha por objetivo o divertimento do público. Sei que parece incrível, mas também fazem parte desta lista artistas de circo, de rua, mágicos, mímicos, criadores e manipuladores de marionetes.
Baseado na aceitação da essência intermitente deste tipo de profissão, o governo francês criou um regime especial de trabalho para os artistas. O modelo assume como regra a alternância entre períodos de trabalho (uma turnê, a produção de um filme) e de desemprego – aí é que vem o surpreendente – remunerado pelo governo com base na média do montante recebido durante o período de exercício.
Claro que não é simples assim. Não basta se dizer músico, fazer um show por mês num bar e tocar toda noite na Pont des Arts para ser considerado um intermitente do espetáculo.
A regra atual exige que, para ser aceito no estatuto, o artista tem de justificar a carga de trabalho remunerado de 507 horas num intervalo de 319 dias. Feitas as contas, isso representa mais ou menos três meses de trabalho, ao ritmo de oito horas por dia, num período de dez meses.
Parece pouco, mas não é. A lei considera a intensidade da natureza do trabalho do artista – horário de trabalho extremamente parcelado, normalmente exercido fora do horário de trabalho convencional, com uma pressão por resultados exercida não só por um chefe, mas por toda uma platéia.
Some-se a isso o maior pesadelo dos candidatos a intermitentes: aqui, como aí e em qualquer lugar, a maior parte das contratações de artistas se faz no mercado informal. Ele chega, se apresenta para um público, recebe o combinado e não se fala mais nisso. Sem contrato nem impostos recolhidos, este tipo de trabalho – ainda que comprovado e remunerado – não conta como carga horária para justificar o estatuto.
Ainda que difícil de conseguir, a regularização da profissão de intermitente dentro de parâmetros factíveis torna a atividade artística uma possibilidade real para os jovens franceses – e para toda a sociedade, que passa a enxergar na arte infinitas possibilidades.
É comum, por exemplo, que grandes empresas contratem grupos de teatro para sensibilizar seus funcionários para questões sensíveis, como a integração de pessoas com necessidades especiais ao mercado de trabalho. Ao invés de palestras, é comum o governo ou grandes companhias preverem animações com artistas de circo para passar uma determinada mensagem.
Acho que o estatuto de intermitente explica em grande parte porque a cultura está tão profundamente arraigada na população francesa – mas exemplifica também o lado bom e ruim de uma seguridade social que é uma das responsáveis pelo tamanho da dívida pública do país.
Carolina Nogueira é jornalista e mora há dois anos em Paris, de onde mantém o blog Le Croissant

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