15 de mai. de 2010


CARTAS DE BARCELONA

A ferida aberta do franquismo


 “Suspenderam Garzón!!!” Era eu, perplexa, ao telefone com uma amiga ontem à tarde. “Suspenderam???” Ela também ficou perplexa. Eu, ela e pelo menos metade da Espanha.
Baltazar Garzón, 55 anos, suspenso ontem de suas funções pelo Conselho Geral do Poder Judiciário espanhol, é mais que um juiz da Audiência Nacional. Ele é “O” Juiz.
Para uns, “juiz estrela”; para outros, “justiceiro”. Mas Garzón é, sobretudo, o Juiz que ousou supurar a ferida malcheirosa do franquismo.
Ferida mais que purulenta, precariamente tapada pelo curativo de uma anistia que escondeu sob o tapete do perdão ilusório nada menos que 114 mil desaparecidos políticos.
Em outubro de 2008, Garzón tomou para si a responsabilidade de investigar os crimes cometidos pela ditadura do general Francisco Franco, que governou a Espanha - por força de um golpe militar e depois de três anos de Guerra Civil - desde 1939 até sua morte, em 1975.
Foi a primeira vez na história da Espanha que um juiz atreveu-se a investigar criminalmente o que sempre foi crime, e crime contra a humanidade: prisão, tortura, exílio forçado, desaparecimento e eliminação sumária de seres humanos por razões políticas e ideológicas.
Garzón reuniu as denúncias de 22 organizações de familiares de desaparecidos e autorizou exumações em 19 fossas espalhadas pelo país, entre elas a do escritor Federico García Lorca, uma das primeiras vítimas da Guerra Civil.
Desenterrar o fantasma do franquismo foi o último “crime” do Juiz Garzón, mas não o único. Em 22 anos de carreira, ele desbaratou a trama política e financeira de suporte ao ETA, grupo terrorista basco; desarticulou a máfia galega de narcotraficantes; investigou o desaparecimento de espanhóis durante as ditaduras argentina e chilena; e promoveu a prisão do ex-ditador chileno Augusto Pinochet, em Londres, em 1998.
A última de Garzón foi mergulhar fundo num lamacento esquema de corrupção encravado na cúpula do Partido Popular (PP), sigla do ex-presidente espanhol José Maria Aznar.
O chamado “Caso Gurtel” ocupa há meses as manchetes de jornais, expondo dirigentes do principal partido de oposição a Zapatero, que divide com os socialistas a ascendência – e representação – no Judiciário.
E foi na própria casa, o Judiciário, que Garzon perdeu a espada. Denunciado pela ultradireitista Manos Limpias, pelos herdeiros de Franco, a Falange Espanhola, e pelo próprio PP, o Juiz responde por prevaricação, entre outros crimes, por ter se declarado competente para julgar os desmandos do franquismo.
Nos últimos meses, recebeu apoio massivo, desde organizações internacionais de juristas até multidões de espanhóis que saíram às ruas - em Madri, Barcelona, Sevilha, Zaragoza e várias outras cidades.
A nata dos artistas saiu em sua defesa. “A sociedade tem uma dívida moral com os que perderam a guerra e com os familiares dos cadáveres que jazem nas valas. Se a Falange leva Garzón ao banco dos réus, é como se Franco ganhasse de novo e isso é muito difícil de digerir”, disse o cineasta Pedro Almodóvar.
O escritor português José Saramago publicou em seu blog (http://caderno.josesaramago.org) um desagravo ao Juiz. Diz que ele é “vítima do despeito de alguns dos seus pares demasiado complacentes com o fascismo” e o define como “o corajoso e honesto Baltasar Garzón que se atreveu a processar Augusto Pinochet, dando à justiça de países como Argentina e Chile um exemplo de dignidade que logo veio a ser seguido”.
Poucas horas depois da sentença que suspendeu Garzón formou-se - via twitter, facebook e torpedos SMS - uma inédita, gigantesca e voluntária rede convocando protestos em sua defesa, em vários pontos da Espanha.
Famílias de desaparecidos iniciam longas vigílias, enquanto o Tribunal Superior segue julgando o Juiz. Suspenso preventivamente, Garzón tenta ser transferido para a Corte Penal Internacional de Haya.
À parte as questões jurídicas e processuais, que não me cabe discutir, Garzón está no banco dos réus porque colocou ali o maior inimigo da democracia espanhola: o fantasma de Franco, mais vivo do que nunca.
Seus críticos o acusam de ser demasiado vaidoso, um missionário frustrado e um político falido.
Pode ser. Mas eu ouço o emocionado desabafo de um amigo catalão que teve pai e avô presos e torturados pelas tropas de Franco, apenas por falarem Catalão, que não era a língua do ditador, e continuo me perguntando: qual foi o crime do Juiz Garzón?

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