27 de jul. de 2009

O Amor em tempos de cólera:

Lupicínio Rodrigues e Arrigo Barnabé

As canções interpretadas por Arrigo são também narrativas que tecem, simultaneamente, a compreensão do que é o amor para Lupicínio e para seu cultor. Assim, as canções mesclam revolta, indignação, sentimento de perda, mas também displicência com a amada. E humor.

Data: 25/07/2009 “Caixa de Ódio” é a apresentação,no café-concerto Casa de Francisca, das canções de Lupicínio Rodrigues por Arrigo Barnabé com os virtuoses no piano e violão Paulo Braga e Sérgio Espíndola. Essa “caixa” é também a de Pandora, uma escultura com aparência feminina encantadora, criação dos deuses gregos e doada aos homens. Foi ela a vingança de Zeus contra Prometeu que lhe roubou o fogo sagrado. Por isso ela queimará os homens. Mas sua beleza visível contraria sua realidade secreta onde reina um temperamento devorador que “não suporta nem a mediocridade, nem a continência”, como notou o poeta Hesíodo. Resplandecente de beleza e brilho, seduz inapelavelmente os homens, trazendo consigo todos os bens e todos os males. A “caixa de Pandora”, no masculino, é uma “caixa de ódio”. E o ódio exige vingança.

As canções interpretadas por Arrigo são também narrativas que tecem, simultaneamente, a compreensão do que é o amor para Lupicínio e para seu cultor. Assim, as canções mesclam revolta, indignação, sentimento de perda, mas também displicência com a amada. E humor. O enredo então: “Cadeira Vazia” e a mulher que abandona, “Volta” e a presença da ausente, “Aves daninhas”, são “cruéis como punhais”. Ela é “Dona Divergência”, que “com seu archote/espalha os raios da morte/a destruir os casais/e eu, com o batente atingido/sou qual um país vencido/que não se organiza mais.” É preciso ter “nervos de aço”, ela provoca ciúmes, faz o sangue ferver, deixa o amante em estado de confusão mental: amor, despeito, amizade ou horror. E ela é também a traição, vai morar com seu melhor amigo.

Mas há também a revanche, de vez em quando um homem vinga todos os homens, comprometendo a amada adúltera: “ela disse-me assim/tenha pena de mim/vai embora/ele pode chegar/vai me prejudicar/está na hora/e eu não tinha motivo nenhum para me recusar/mas aos beijos caí em seus braços/pedi pra ficar/sabe o que se passou?”. E o cancioneiro se torna conselheiro dos moços, pobres moços que “julgam que há um grande futuro/só o amor nesta vida conduz/Saibam que deixam o céu por ser escuro/E vão ao inferno em busca de luz.”

Já Arrigo, com seus retratos urbanos, inscreve o eterno no moderno: o amor, para ele, não está sob o signo de Saturno, da “doença divina” ou do clamor a Deus. Assim, se Lupicínio diz “Eu gostei tanto/Tanto quando me contaram/Que te encontraram bebendo e chorando na mesa de um bar”, e que precisou de esforços para ninguém notar, a representação de Arrigo opera em um outro registro, pois, com o tempo pulsante e acelerado da grande cidade, na disritmia das notícias dos jornais, dos clips,dos vídeos e dos sinais fantasmáticos,distancia-se do passado, concentrando-se no contemporâneo. Para Lupicínio, o provérbio se refaz: a vingança é “ um prato bem quente”, a dor é sempre atual, porque o narrador é o Sujeito de uma consciência dilacerada com as incoerências da paixão e da racionalidade contrariada. Em Arrigo, um humor suave e provocador estiliza o desencontro, convertendo-o em Jovem Guarda e “ié,ié,ié”. Seu personagem não é o Sujeito de uma verdade objetiva ou de um Eu encarcerado na solidão de si.

Por isso, se o poeta do amor infeliz vestia um terno apertado, paletó abotoado e um cabelo com risca do lado, Arrigo se desprende em um vestuário folgado, liberado de seu drama। Camisa por fora da cintura, gravata negligente e cabelos rebeldes, o lírico moderno se inscreve em um presente contingente e um futuro incerto. Despreocupado com o futuro, à angústia e à cólera sucede a malícia de se pôr em contradição consigo mesmo, nessa capacidade de se dividir em dois, de perder e esquecer. O amor de Arrigo é pós-feminista, incorpora sua luta pela emancipação. Por isso, Arrigo, sem mágoa, libera a esperança aprisionada na “caixa de Pandora”, transfigurando a vingança em uma espécie de cumplicidade e de “perdão”.

Olgária Mattos é professora titular da USP e filósofa

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