3 de jul. de 2009

CINEMA/ESTREIAS

Festa de gols

Documentário "Zico na Rede" troca biografia pela euforia e exibe alguns dos 831 gols em 23 anos de carreira nacional e internacional do jogador, muitos nunca vistos por aqui

RUY CASTRO
COLUNISTA DA FOLHA

O gol como obra de arte -como a consumação de um projeto coletivo ou de uma explosão individual. A anatomia do gol -como os croquis de Da Vinci para os objetos que imaginava ou os de Eisenstein e Hitchcock para seus filmes. A engenharia do gol -um esforço de cérebro, fôlego, músculos e vontade, algo a ser estudado pelos profissionais da autoajuda. E, por fim, a euforia do gol -que Zico não concorda que se compare a um orgasmo, mas ele não pode impedir que o torcedor experimente uma sensação parecida, de excitação extrema e alívio redentor a cada bola que seu time manda para as redes.
Eu sei, as comparações acima são balofas e repolhudas. Mas não resisti a formulá-las diante do prazer até orgasmático, com a duração quase imoral de uma hora, provocado pelo documentário de Paulo Roscio, "Zico na Rede", que entra nesta sexta-feira em cartaz no cinema Odeon, no Rio, e no Reserva Cultural, em São Paulo, antes de chegar a outras capitais e sair em DVD no fim de julho.
O filme mostra algumas dezenas dos 831 gols do cidadão Arthur Antunes Coimbra, Zico, em 23 anos de carreira como jogador do Flamengo, da Seleção Brasileira, do italiano Udinese e dos japoneses Sumitomo e Kashima -muitos nunca vistos por aqui, num trabalho de pesquisa que levou mais de um ano e só foi possível pelo patrocínio da Eletrobras.
O filme não tem nada de biográfico -nada de "nasceu em Quintino, pegava o trem todo dia para treinar, fez e aconteceu no futebol e tem hoje duas estátuas em Tóquio". E nenhuma referência ao chute no joelho que quase encerrou sua carreira, em 1985, ao esforço que fez para voltar ao futebol e ao pênalti perdido contra a França, poucos meses depois.
Ainda bem. Tudo isso é carne de vaca e já foi contado nos cinco livros publicados até agora sobre Zico e em vídeos sobre o profissional, o craque e o homem.
O título, "Zico na Rede", diz exatamente a que esse documentário se propõe. É uma festa de gols, todos antecedidos de falas curtas e objetivas do próprio Zico e de colegas como Junior, Adílio, Raul, Edinho ou o folclórico Peu, explicando a gênese de cada gol e seus graus de dificuldade ou originalidade. À sua maneira despretensiosa, o filme promove o gol à categoria de ciência.

Inocente molecagem
Há gols de bola parada, em movimento, de pé esquerdo (sendo Zico destro), de cabeça, de joelho e até de bunda. Há o gol em que a bola quicou na grama irregular e Zico, que se preparava para chutar rasteiro, deu um balãozinho mortal sobre o goleiro, e aquele em que, ao contrário, a bola se atrasou e, na mesma passada, ele teve de puxá-la com o lado do pé antes de bater de primeira.
Há um outro, ainda mais impressionante, em que foi Zico quem passou da bola, mas salvou a jogada mergulhando para frente e fazendo o gol de calcanhar -para ele, o mais bonito de sua carreira, e marcado no Japão.
Gols de arrancada com a bola dominada, de área a área, e entrando pela defesa adversária sem apelação, como os que Kaká costuma fazer, há inúmeros -só que as arrancadas de Zico eram ainda mais rápidas. E constata-se que os gols que pareciam de oportunismo, como os nascidos em rebatidas do goleiro ou da zaga, só surgiram pelo seu senso de colocação e de antevisão das jogadas.
Os gols em cobrança de faltas têm um capítulo especial. Zico praticava todos os estilos -com a bola colocada, de curva ou com força-, mas o principal é que, ao chutar, já analisara o estilo do goleiro. Outro macete era o de, em jogadas na grande área congestionada, usar como referência a toalha ou a bolsinha que os goleiros costumam pendurar na rede ou guardar dentro do gol -e não foram poucas as vezes em que Zico fuzilou a toalha ou a bolsa.
(Na pré-estreia do filme, na semana passada, no Rio, esses foram os gols campeões de aplausos.) Aliás, o goleiro mais vazado no filme é Leão, pelo Palmeiras, Vasco ou Grêmio.
Com toda sua lucidez sobre a ciência do gol, Zico nunca se furtou também a uma pequena superstição. Bem jovem, ele descobriu que nem por brincadeira os goleiros gostam de ver a bola entrando na meta. Com isso, sempre que o gol estava difícil de sair, Zico não perdia a chance de mandar para as redes uma bola fora de jogo e que estivesse ao seu alcance na área -uma inocente molecagem, que às vezes lhe custava um cartão amarelo.
Mas era para "ensinar à bola o caminho do gol". E, por acaso ou não, ela aprendia muito bem o caminho que, às vezes, levava à goleada.


ZICO NA REDE

Direção: Paulo Roscio
Produção: Brasil, 2009
Onde: estreia no Reserva Cultural
Classificação: livre
Avaliação: ótimo

Nenhum comentário:

Postar um comentário