27 de jul. de 2009

Biografias, um sinal dos tempos?

A biografia sempre foi um dos ramos da literatura mais procurados pelo público, com maior ou menor intensidade dependendo da época. Livros que descrevem, narram, pesquisam e se atentam sobre a vida de alguém notório sempre seduziram e chamaram a atenção dos leitores, não importando em que região do planeta eles se encontrem. Viciada nesse tipo de leitura tive minha primeira grande “experiência”, aos 16 anos, com “Vinicius de Moraes, o poeta da paixão”. Nunca mais parei.

Não parece também que, no mundo, essa pequena “tara cultural-literária” vá decrescer no futuro. Segundo a Amazon, no ano de 2000 menos de 5% das obras literárias mais vendidas eram biografias (ou autobiografias), e em 2007 o percentual já chegava à casa dos 20%. De maneira geral, ao longo das últimas décadas, perto de 10% de todos os livros mais vendidos foram obras biográficas. Um trabalho bastante interessante, publicado no “Media and Culture Journal”, em 2008, realizado pelas pesquisadoras da Universidade de Queensland (Austrália), Susan Currie e Donna Lee Brien, mostrou que desde 1912 até os dias atuais (2007), perto de 12% de todos os livros mais vendidos (bestsellers) foram títulos biográficos.

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“Nenhum grande homem vive em vão. A história do mundo não é senão a biografia de seus grandes homens” - Thomas Carlyle

A própria confecção de certas biografias pode ser tão ou mais interessante que o próprio livro. Exemplos não faltam. Quem não se lembra da novela jurídica da biografia não-autorizada de Roberto Carlos? Ou, do perfil do cantor Frank Sinatra feita pelo jornalista e escritor Gay Talese, que diante da negativa do cantor trabalhou apenas conversando com as pessoas que gravitaram ao seu redor. Ou, caso mais recente, do biógrafo Fernando Morais que mergulhou no baú de 40 anos de diários de Paulo Coelho, para escrever a obra “O Mago”. (Autor fala dos bastidores)

Basta consultar qualquer ranking nacional ou internacional para perceber que as biografias têm sempre um lugar de destaque no gosto dos leitores. Às vezes os números sobem por algum motivo circunstancial, como por exemplo agora, quando as biografias de Michael Jackson explodem, mas em geral a literatura sempre tem estante certa para esse gênero. Estamos falando de milhares de títulos novos lançados a cada década, que geram milhões de leitores ávidos por conhecer detalhes, enigmas, emoções, características, poesia ou o lixo mais vil existente na vida de seus ídolos, ou dos que jamais o serão, mas que não deixam de atrair a curiosidade e atração do mercado consumidor.

Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas - a do meu nascimento e a da minha morte. Entre uma e outra todos os dias são meus” - Fernando Pessoa

Esse fenômeno talvez seja um pouco da história dos nossos tempos. Cada vez mais queremos saber tudo sobre todos. Ficamos frustrados quando “não sabemos ao certo” qual o diâmetro da cabeça de Napoleão, ou qual o primeiro parágrafo de George Sand, ou quem tomou um homérico porre com Mozart três meses antes dele morrer… A vida hoje é um olhar constante sobre os “outros”, um rito de observação alucinante sobre os “terceiros”. Essa curiosidade virou um hábito. O “bio” (de origem grega - indicativo da idéia de “vida”) dos tempos atuais nem sempre é agradável, ou degradável, como um detergente que limpa aqui mas polui ali.

Com a máquina da informação ao nosso alcance, com câmeras de segurança nos vigiando em cada esquina (será mesmo que estamos mais seguros com elas?), com a falta de privacidade que temos mesmo em nosso próprio prédio residencial, com blogs, web sites, YouTube, Twitter, Facebook e outras “inteligências” escancaradas à nossa disposição, acessíveis a nossa imaginação, e em geral extremamente importantes como adição de valor ao nosso trabalho, fica difícil não exigir um viés biográfico qualquer na escrita, na literatura, nas artes, um bio qualquer, um sinal qualquer de legado, de achado, de inusitado. A biografia quase vai deixando de ser um gênero literário para ser uma parte de qualquer obra de arte, quase um vício que a acompanha, que a justifica, que a alimenta e que a devora ao mesmo tempo. Aqui não cabe juízo de valor, ou uma análise sobre se tudo isso é bom ou mal para a sociedade, ou para a literatura, ou para a arte em geral, só cabe mostrar o fenômeno, mostrar que é assim que hoje acontece, assim somos hoje, e talvez por isso mesmo é que as biografias ocupem cada vez espaço na literatura contemporânea.

“Na verdade, não existe história, apenas biografia” - Ralph Waldo Emerson

Cabe salientar a dificuldade de se escrever uma boa biografia, uma das áreas mais complexas e perigosas da literatura. A própria visão, ou admiração, do biógrafo sobre o biografado, para alguns, já é um grande perigo e pode levar a um grande embuste. René Wellek e Austin Warren (Teoria da Literatura, 1971) afirmam, por exemplo, que os documentos mais íntimos da vida de um escritor distorcem o método biográfico quando são encarados como objeto central do estudo. Para eles, a biografia deve assumir responsabilidade com a verdade sem anular o poder da imaginação. Se o biógrafo transformar uma simples informação em engenho (ao inventar ou suprimir material para criar um determinado efeito), pode falhar na verdade. Mas se por outro lado, ele só se contenta com o relato dos fatos, pode falhar na arte. A conclusão é que desenvolver uma obra biográfica é uma das mais hercúleas tarefas da literatura, mesmo com as novas possibilidades abertas pelo fácil acesso a informação.

Valorizar esse trabalho é necessário, muito, sempre. Não poucas vezes a história conheceu biografados medíocres com biógrafos de enorme talento. Não raras vezes gostamos de ler um biógrafo independente de quem seja por ele biografado. Biografar é escrever sobre os outros, para outros mais lerem, sem perder o seu eu. Divino desafio.

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